Minha foto


Poeta catarinense
com dedos podres
e mania de flâneur

Autor de "Cá Entre Nós -
Odes de Alusão e Ilusão"

RITA ESTÁ EM DÉBITO CONOSCO



ARAÇÃO


Às seis da tarde credos em cruzes

Acotoveladas de si bemóis violas curvas 

Turvos olhares pandeiros frouxos - couro da pele 

Anjos da Ave voam das granjas, dão canja à janta 

Marias baking meninas faking falsetto sacro 

Milho do pago pagão dourado tempero forte. 

Da flor do sal brotam cheirosas frangas sem penas 

Umbrais de fêmeas, sem mais soleiras, eiras febris. 

Assim, meu anjo clarinho rosa se esgueira à porta 

Torta se mostra sem rumo ou vela, de harpa zarpa 

Afina a corda, pega na corda, acorda cordão. 

Vem sem pecado, benta receita a gente aceita 

Voa, revoa em benzer a proa até à popa, muda de vento 

Poema invento, 

Gregoriano o canto o manto o mato o santo

Da mata a seiva seita a saliva 

a vida avulta avulsa afoita moita 

Carne moída de surra e sina, carne dorida, 

Carne pra fome, carne da vida.


de Rita Cassia Martins



          Que louca. Impossível não simpatizar de imediato com o autor das linhas acima. Não é exagero dizer que Rita impressionou os jurados do I Concurso Novas Vozes da Poesia com o seu Aração. Texto alegórico, cadenciado, infenso às estéticas clássicas, permeado de símbolos e conotações irônicas. Através dele mostrou ser conhecedora de poesia, segura de sua técnica, expôs com graça seu farto vocabulário e despertou curiosidade geral acerca de suas obras prévias. Aração desbancou outros sessenta e sete textos concorrentes.
          Há algo de intrinsecamente feminino na simbologia a qual o poema se propõe, mas onde ancorar esse conceito? Talvez seja melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem. Roger Bastide alertou para este perigo: "No fundo, a ideia de procurar uma poesia feminina é uma ideia de homens, a manifestação, em alguns críticos, de um complexo de superioridade masculina." E recomendava: "Diante de um livro de versos, não olhemos quem o escreveu, abandonemo-nos ao prazer."
             Para além de seus temas, fica evidente que a autora escolheu milimetricamente o som de cada frase, de cada rima pouco óbvia, e que estudou a musicalidade dos termos como se arasse com afinco o próprio texto. Texto para ser lido em voz alta - em tom soturno de preferência. Tudo nele está onde deve estar: a sensação é a de terra lavrada com persistência. Mas o que se consolida como virtude também faz com o que o leitor de Rita fique em standby: e agora, para onde é que ela vai? Quem é essa desvairada? Já disse tudo? 
              E Rita não falou mais nada. É uma mulher concisa. Na noite da premiação, de preto dos pés à cabeça, sussurrou: "Estou sem palavras." A verdade é que o leitor de Rita fica insatisfeito. Aração já não nos basta. Que o anjo é clarinho e rosa nós já sabemos, mas de que matéria é feito? Voa, não voa? É mais bento ou mais impuro? Queremos saber mais.
           Como já disse Antonio Candido, e como bem sabem os novos poetas, a literatura não existe na gaveta: só vive como relação inter-humana, quando se completa o triângulo autor/obra/público. Outros virão, Rita, não virão? Aguardemos.